quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

A Transição: do "Tudo" ao "Nada"




        Nasci em 1971 na cidade de Yonkers, cerca de 15 Kms a Norte de Manhattan, Nova Iorque. Filho de pais açorianos, vim para os Açores, com seis anos, para iniciar os meus estudos de 1º Ciclo cá em Portugal. Meus pais, com 26 e 24 anos, traziam um punhado de trocos e a esperança de uma vida melhor para mim e para minha irmã (com 1 ano). 1977, Freguesia de Santa Luzia, Ilha do Pico, Açores. Não havia eletricidade, nem água canalizada. Passei do Mundo da TV Cabo para um mundo com poucos bens materiais. Mas vivia muito mais feliz…tinha liberdade! Saía à rua quando queria, não se falava em raptos e crime, as portas permaneciam sem chave… Logo desde o nascer do dia, já se ouvia o “guinchar” da madeira dos eixos dos carros de boi a rodar. Dependendo da altura do ano, poderiam vir carregados de pasto de milho, de figos para aguardente ou de pipas carregadas de uva após terem passado pelo “desbagoadoro”. Foram os últimos anos de uma atividade secular, cujas marcas (trilhos) ficaram lavradas no solo basáltico, marcas essas formadas pela passagem repetida de milhares de rodas desses carros movidos por tracção animal. São as “rigueiras” dos carros de bois, eternas como os valores da vida que passaram desde os meus antepassados, de geração em geração, e que meus pais muito bem souberam preservar e entregar aos seus filhos.

        A transição... Passei de um Mundo dos bens materiais... para um Mundo que parecia "do Nada"! Eletricidade, Água Canalizada, Casa de Banho, TV, Frigorífico, Telefone ... bens que hoje são considerados básicos e que ninguém conseguiria viver sem eles. Meus pais habituram-se a eles nos E.U.A. e conseguiram ensinar-me a viver sem eles:

- Eletricidade ---» Luz a petróleo (a incandescente de camisa era um espetáculo);

- Água Canalizada ---» Água do tanque - não havia casa no Pico que o não tivesse para aparar água das chuvas. Colocavam dois ou três peixinhos para limpar os insetos que caíssem ou se quisessem reproduzir na água;

- Casa de Banho ---» Retrete - casinha de pedra no exterior, com um banco com um ou dois (para o casal) buracos circulares, onde nos sentávamos para fazer as necessidades. Sem papel higiénico, poderíamos limpar o rabo com um "sabugo" - parte interior da maçaroca de milho depois de seca e debulhada (a técnica poderei explicar depois); Lavar... aquela celha de madeira com água quente resolvia;

- TV ---» Contacto com a Natureza - um quintal enorme com árvores e animais... nunca me hei-de esquecer daquela bezerra brava (filha da Estrela) que parecia um boi do "Rodeo" e daquele dia que me fui sentar em cima de uma vaca que estava deitada, esta levantou-se repentinamente e eu dei uma marrada no chão - influência dos filmes de cowboys que via na TV nos EUA. Pensei que ninguém tinha visto a queda, mas meu pai, sobre o balcão da "atafona" (casa com engenho de tração animal com mós em pedra para moer o milho) assitiu a tudo e deve ter se fartado de rir. Ele previra a queda, mas não correu a me avisar... sempre me deixou dar as cabeçadas... a melhor forma de ensinar... a melhor forma de aprender;

- Frigorífico ---» "Veja"(espécie de peixe) escalada - o bacalhau do Pico; Salga de carne na talha; Linguíça e torresmo de carne conservados na banha; e tudo o que a Natureza nos tinha para dar no momento: Pesca, Agricultura, Caça...;

- Telefone ---» Para quê? As pessoas viviam junto umas das outras. Comunicavam na presença ... quem estivesse longe... era esperar pelo reencontro ...

        Mil e uma memórias... mil e uma formas de viver sem os luxos de hoje... Meus pais ensinaram-me ... deram-me este guia de sobrevivência... Foram momentos de uma felicidade imensa e um Mundo por descobrir. 
        Hoje seria capaz de o fazer, viver sem os bens essenciais? Sem dúvida... Basta para tal: viver com as pessoas que mais amo e me darem o meu Mar e a Terra que me fez crescer!

        Quem nos garante que um dia não teremos de "regressar ao futuro"?



                                                                                                             Abraço








8 comentários:

  1. pois e onde vives hoje? será que nao tens isso tudo e usas todos os dias.

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  2. Felizmente... hoje tenho todos esses bens essenciais... sabendo dar o valor a tudo aquilo que tenho!
    Infelizmente, ainda existem muitas pessoas sem rosto que falam de barriga cheia e não sabem dar o valor. Um dia... alguém sofreu muito para sermos quem somos hoje!

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  3. O comentário do Anônimo: Cheira-me a político ou alguém que por lá anda. Parece o choradinho daquele mamífero mimado que foi distraído enquanto se amamentava!

    João Paulo

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  4. Espetacular como o Rui mexe com muitos dos nossos sentimentos e nos faz reviver momentos passados.
    O Anónimo que fez o 1º comentário ou é intelectualmente pobre ou sofre de algo semelhante ao que foi escrito neste blog no passado dia 1 de Dezembro! Um bem haja e continua a espalhar a esperança!

    Fátima Sousa

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  5. Elisabete Garcia Ávila23 dezembro, 2011

    Cada história tua faz-me reviver a minha. Eram diferentes decerto mas com todos os "tons" iguais... Nó na garganta e gestão do cai nao cai da lágrima... qse q dá pra sentir o cheiro do petroleo das nossas lanterninhas, sentir o carro de bois a guichar;tanta boleia q apanhei de carro de boi! :) liiiiiiiiiindo. Sou fã do teu blog, maravilhoso. Vou tomar a liberdade de ler estas histórias à minha filha.

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  6. Adorei este texto! És um grande escritor! É mesmo uma história digna de contar ás nossas crianças, e o melhor de tudo isto, é tudo verdade!

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  7. É isso tudo Rui.....Plenamente de acordo, cada vez mais!
    Um grande abraço
    Paulino
    P.S. Estás me a sair um grande filósofo....

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  8. Amigo Paulino,

    Há quanto tempo... e uma grande saudade dos tempos da Calçada da Picheleira (Lisboa). Quanto à história do filósofo... deve andar por São Jorge (já não o vejo há muitos anos).
    Um grande abraço para as Lajes... e para todos os amigos "lepras".

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